domingo, 30 de janeiro de 2011

Família e feijão

   Tenho o coração cheio de família (e de feijoada) por isso me lembrei do livro A Pérola, de John Steinbeck.  Nesse livro, Steinbeck falava da canção da família, como se todas as famílias tivessem uma melodia própria, como um cheiro próprio. Não sei, às vezes oiço mal e tenho sinusite, mas hoje tenho o coração cheio dessa canção, a canção da família.
   Como o fim-de-semana foi de família, mas também de feijoada (ao almoço e ao jantar, à transmontana, à brasileira, com feijão vermelho, preto), há por aqui sons que tenho alguma dificuldade em distinguir, mas isso são outros cheiros, perdão, outras músicas!

sábado, 29 de janeiro de 2011

Santa

   Lá está de novo parada. É assim todos os domingos, fica à espera do autocarro que nunca vem. Não sei se quer entrar ou se espera que alguém de lá desça. Às nove da manhã vem, às vinte e uma vai embora. Dir-se-ia um ritual, uma missa, lá estão as mesmas mãos persistentes, a mesma candura, um olhar quase morto, parado numa imagem, rua ou pessoa. Dir-se-ia uma santa, tanto tempo parada, inerte, serena. Vê-la assim de colo elegante e distinto atrai como um iman e insisto a olhá-la. Não me vê, não vê ninguém, está fixada em alguém dentro de si, num outro tempo, numa outra vida. Oxalá venha o autocarro, ou a pessoa ...
Se ela ao menos soubesse que nesta rua não há paragem, que lá mais longe há outras ruas, mais autocarros ...

domingo, 16 de janeiro de 2011

Mezinhas

   Lembrei-me de uma mezinha para os maus dias, penso que agora lhe chamam psicologia positiva. Consiste em lembrar as coisas pelo lado bom, pensar mais no bem, redescobrir o humor. Podemos cumprimentar o dia, até a chuva que te permite usar o guarda-chuva fashion que compraste nos saldos a preço tcharam; olhar as pessoas com mais atenção, surpreendê-las (de preferência com mimos); dar uma gargalhada ao teu espelho e beijar-te, dizer-te que és bonita, muito bonita (é tão ridículo que é capaz de resultar!); dizer frases como: "Este pequeno almoço está bués. Sortuda, não é toda a gente que come esta bucha, ãh?"; "Vou curtir o dia, quer ele queira, quer não!"; se aguém te chateia, dizes: "Estás mesmo gira, pá! Onde compraste esses olhos? Também quero uns!".
   Faz isto, festeja-te, anima-te, admira-te, anedota-te, o mundo tem uma sorte do catano em passear-se contigo!
   P.S. Se te lembrares de mais alguma, não te importas de partilhar? Ó, és tão gentil! Obrigada.

Saúde em cada gesto

   Ontem vi uma senhora num filme que, confrontada com uma realidade difícil, reagiu de uma forma tão natural, tão sem raiva, tão sem exigência que ela mesma se surpreendeu da própria calma, a ponto de afirmar: "A sério, eu sou mesmo saudável!".
   As reacções também podem ser saudáveis? Fiquei muito tempo a pensar nisto, a tentar perceber quando é que têm mesmo saúde? Talvez só quando instintivas, como a da senhora, quando não sacaneiam ninguém, nem quem as profere (que palavra snob!). É muito difícil atingir essa placidez, ter essa tolerância (esta palavra implica cedência e ceder fica caro, despersonaliza). E se não for tolerância? Acho que é qualquer coisa maior, mais desprendida e esse desprendimento não é de nós, nem dos outros, acho que é só compreensão, sem drama, a situação a nu. Não é generosidade, é o que é. Se for assim, é saúde, melhor, é liberdade. Mas estamos a falar de um filme...
   Haverá mezinhas caseiras que instiguem à paz, serena e providencial paz? ... Se houver, alguém me traz um migalho, por favor? ...

Agora a Maria João, outra voz.

   Esta é nacional, é bom!

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Poemas às mãos



Com mãos se faz a paz se faz a guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema – e são de terra.
Com mãos se faz a guerra – e são a paz.

Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.

E cravam-se no Tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.

De mãos é cada flor cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.

Manuel Alegre







































As Minhas Mãos



As minhas mãos magritas, afiladas,
Tão brancas como a água da nascente,
Lembram pálidas rosas entornadas
Dum regaço de Infanta do Oriente.

Mãos de ninfa, de fada, de vidente,
Pobrezinhas em sedas enroladas,
Virgens mortas em luz amortalhadas
Pelas próprias mãos de oiro do sol-poente.

Magras e brancas... Foram assim feitas...
Mãos de enjeitada porque tu me enjeitas...
Tão doces que elas são! Tão a meu gosto!

Pra que as quero eu - Deus! - Pra que as quero eu?!
Ó minhas mãos, aonde está o céu?
...Aonde estão as linhas do teu rosto?

Florbela Espanca, in "Charneca em Flor"




 

















Dá-me as Tuas Mãos
As mãos foram feitas
para trazer o futuro,
encurtar a tristeza, encher
o que fica das mãos
de ontem - intervalos
(duros, fiéis) das palavras,
vocação urgente
da ternura, pensamento
entreaberto até
aos dedos longos
pelas coisas fora
pelos anos dentro.

Vítor Matos e Sá, in 'Companhia Violenta'



De novo a poesia

Poema do Menino Jesus

Num meio-dia de fim de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu tudo era falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque nem era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E que nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o Sol
E desceu no primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão 
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar para o chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que ele as criou, do que duvido." -
"Ele diz por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres."
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.

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Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural.
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é por que ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontado.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do Sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos dos muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

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Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

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Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam ?

                          Alberto Caeiro 

domingo, 9 de janeiro de 2011

A casa está tão vazia

    O barulho faz-me lembrar uma casa desarrumada, há sempre qualquer coisa que está fora de sítio. O silêncio é arrumado demais, falta-lhe o pó das palavras. Quando tenho um, quero o outro (sou muito coerente!). Neste momento, queria o barulhinho bom das palavras.
    Tia é uma palavra bonita, não acham? Os meus sobrinhos usam e abusam do som. Quando não estão, tenho saudades do seu ruído. Com ele, fazem-me cansar e, depois, para me apiegar, melhor, para me encantar, fazem-me declarações de amor deliciosas: Argumento da Sara quando lhe chamo a atenção "Mas, tia, eu gosto de ti!"; da Ana " Tia, se tu tivesses um milhão de filhos, eu acho que eras gentil com todos!"; a Margarida, quando a elogio, escreve-me "sobrinha de peixe..."; a Joana passa pouco tempo comigo, mas quando está, adoro a sua paciência e sorriso; a Daniela pergunta sempre "Estás boa, titi?", desde pequenina; o Pedro já cresceu um pouquinho, mas ainda me pede "Tia, brinca comigo!"; o André vejo-o mesmo muito pouco, gostava de o conhecer melhor, ele faz tão pouco ruído!